A CABRI lançou recentemente uma nova área de trabalho: Potenciamento da Gestão Digital das Finanças Públicas em África, com o apoio da Fundação Bill e Melinda Gates. O webinar inicial contou com a participação de 15 países africanos e foram partilhadas as experiências do Ruanda, do Benim e da África do Sul em relação à digitalização dos respectivos sistemas de GFP. No decorrer do debate, foram identificados os principais desafios enfrentados pelos países africanos ao procurarem fortalecer estes sistemas, nomeadamente: a gestão, a manutenção e a desactivação dos sistemas existentes; a especificação excessiva dos sistemas; políticas de contratação desajustadas e inflexíveis; e resistência das partes interessadas. Estas ilações servirão de orientação para o novo fluxo de trabalho da CABRI em matéria do potenciamento da gestão digital das finanças públicas em África.
Um pouco por todo o mundo, os países recorrem às tecnologias digitais com vista a melhorar os seus sistemas e serviços públicos. Um aspecto comum a todos os contextos é que a transformação digital é complexa. Exige não somente uma preparação e um planeamento cuidadosos, como também a mudança de comportamentos e a capacidade de adaptação a obstáculos inesperados.
Os ministérios das finanças desempenham um papel fulcral na digitalização dos serviços públicos, uma vez que os sistemas financeiros constituem o cerne das funções de governo, assegurando a mobilização, afectação e utilização dos recursos nacionais de modo a cumprir os objectivos políticos. Com vista a criar uma articulação eficaz entre a dotação financeira e os objectivos políticos, os ministérios das finanças devem pensar para além da mera modernização dos sistemas de informação de gestão financeira (SIGF) ao considerar como disponibilizar dados relevantes no momento oportuno e escolher a solução digital que permita melhorar as funções de GFP. Face à disponibilidade de várias soluções digitais – como business intelligence, big data, inteligência artificial e automação robótica de processos – a questão passa por saber como os governos podem tirar partido deste crescente conjunto de ferramentas digitais para assegurar uma melhor articulação entre os sistemas financeiros e o fornecimento de bens e serviços aos seus cidadãos.
Este ano, a CABRI iniciou uma nova área programática designada por Potenciamento da Gestão Digital das Finanças Públicas (GFP) em África. Em toda a África, os governos gastam tempo e recursos financeiros avultados na implementação de novos sistemas digitais. Esta área de trabalho visa aprofundar o intercâmbio de conhecimentos em relação às suas experiências, a fim de garantir que os países membros possam implementar com maior celeridade e sucesso soluções susceptíveis de potenciar as suas iniciativas de reforma orçamental e robustecer a prestação de serviços públicos.
No dia 18 de Abril de 2024, 60 participantes de mais de 15 países reuniram-se num webinar promovido pela CABRI para lançar esta nova área programática. O webinar ofereceu uma oportunidade para a CABRI começar a facilitar o debate sobre a gestão digital das finanças públicas, com três países a partilharem as suas experiências num debate de painel:
África do Sul | Ruanda | Benim |
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HENDRIK SWANEPOEL | PLACIDE MUKWENDE | FRANÇOIS BEKPON |
A reforma do SIGF na África do Sul arrancou no início dos anos 2000, mas enfrentou desafios significativos que impediram a implementação do novo sistema. Os processos de aquisição e a definição de especificações levaram a que a África do Sul continuasse a utilizar as soluções existentes baseadas em Excel para os processos de GFP. | O Ruanda partilhou a sua experiência de ‘eliminar o papel’ pela aplicação do SIGF. O sucesso do SIGF do Ruanda deve-se, em parte, à equipa interna de programadores, capazes de ajustar os sistemas à medida que as necessidades evoluem, e ao profundo empenho na digitalização por parte dos níveis superiores do governo. | O Ministério das Finanças do Benim explicou a importância da aplicação de uma abordagem modular no desenvolvimento dos seus sistemas digitais de GFP, que permitem a utilização de soluções de software distintas em diferentes partes do sistema de GFP. O Benim concentrou-se em garantir uma única fonte de dados, e todos os sistemas aplicaram um conjunto definido de princípios orientadores. |
No decorrer do webinar, que durou uma hora e meia, foram invocados e discutidos muitos desafios comuns, com destaque para os que se seguem:
Gestão, manutenção e a desactivação dos sistemas existentes
Cada país possui múltiplos sistemas digitais – seja um SIGF comercial de uso genérico (COTS, na sigla inglesa) ou um conjunto de ferramentas, integrando pastas de trabalho Excel que permitem a produção de orçamentos, relatórios e análises. No presente contexto, os países já não começam do zero, mas não devem perder de vista os sistemas e processos existentes ao projectar as suas reformas digitais, melhorando o sistema módulo por módulo.
O exemplo da África do Sul serve de cautela sobre a importância de não descurar os sistemas existentes. Em média, uma reforma do SIGF em grande escala demora sete anos a ser concluída na África Subsariana[1] . Na África do Sul, a reforma inicial foi concebida no início de 2000. Tendo em vista o novo sistema integrado, os departamentos foram aconselhados a não investir nos seus sistemas existentes, o que levou a que as ferramentas originais baseadas no Excel, aplicadas na maioria das funções de GFP deixassem de ser revistas ou actualizadas. Embora essas ferramentas simples tenham sido confiáveis e funcionais até à data, Hendrik Swanepoel observou que estavam a começar a aparecer algumas rupturas em virtude de desses sistemas antigos terem sido descurados.
No Benim, os sistemas existentes foram mantidos enquanto os novos sistemas de GFP iam sendo desenvolvidos. François Bekpon sublinhou que os sistemas existentes não devem ser descontinuados demasiado rapidamente. Durante a reforma digital no Benim, em determinados períodos, os novos e antigos sistemas funcionavam em paralelo até ter sido estabelecida a confiança na capacidade dos novos sistemas de recolher dados de qualidade e na capacidade de executar esses novos sistemas. Só depois de o novo sistema ter sido ensaiado, testado e adaptado é que os sistemas antigos foram desactivados.
Definição das especificações – o problema linguístico
Um sem número de estudos revela a necessidade de ser adaptativo e iterativo na concepção e desenvolvimento de sistemas digitais[2]. Isto implica abandonar o planeamento linear, no qual as especificações são definidas antecipadamente, assim reduzindo a capacidade de adaptação às experiências dos utilizadores e às mudanças nos processos de GFP. Nem sempre é possível definir as especificações exactas antecipadamente, mas os sistemas digitais também não podem ser desenvolvidos sem que sejam configurados alguns parâmetros. Por conseguinte, os países devem introduzir um processo que recolha contínua de feedback e de obtenção de contributos, que são utilizados para ajustar o plano, as especificações do sistema e as ferramentas. Esta abordagem tem como objectivo assegurar que a reforma digital prima pelos objectivos finais preconizados, o que exige uma forte capacidade de coordenação e de consenso no seio do governo.
A dificuldade em definir especificações prende-se com o facto de os sistemas digitais de GFP serem um processo multidisciplinar, abrangendo especialistas em TI e uma infinidade de utilizadores – desde economistas, gestores de dados, contabilistas, operadores. Cada utilizador possui a sua própria noção das necessidades e da finalidade do sistema digital. Embora os desenvolvedores procurem atender a essas necessidades, não existe forma de traduzir as múltiplas exigências destes especialistas. Frequentemente, surge um desalinhamento na compreensão e o sistema resultante fica aquém das expectativas dos diferentes utilizadores.
No Ruanda, o recurso a uma equipa interna de desenvolvimento do SIGF permitiu ultrapassar este problema. Placide Mukwende explicou que existe uma equipa dedicada no Ministério das Finanças, responsável pelo desenvolvimento e melhoria contínua do SIGF. Esta assegura que seja identificado qualquer desalinhamento de expectativas ou feedback dos utilizadores, que por sua vez é transmitida aos desenvolvedores que estão em melhores condições para responder, ao contrário da situação de quando o governo dependia de provedores de serviços externos, por exemplo.
A contratação pública para reformas digitais constitui um desafio
As especificações são um factor importante nos processos de contratação pública para sistemas digitais. As regras em vigor em matéria de contratação pública exigem frequentemente que os ministérios das finanças definam as suas necessidades antes de os contratos para o desenvolvimento de sistemas digitais serem adjudicados – é frequente vigorarem tais processos, que são exigidos por lei para gerir potenciais riscos durante a fase de gestão de contratos, fomentar economias de escala e poupar custos. Todavia, estas abordagens tradicionais em matéria da contratação pública podem reduzir a capacidade dos governos de adoptar uma abordagem adaptativa e orientada para os problemas e, por vezes, acabam por custar aos governos mais do que o previsto, sobretudo em situações de estrangulamento e de as especificações terem de ser modificadas. Ademais, frequentemente não são tidos em conta os investimentos avultados necessários para a modernização das infraestruturas (por exemplo, servidores, centrais de dados, dispositivos de rede, computadores), a manutenção dos sistemas e a formação contínua.
O carácter multidisciplinar de uma reforma digital da GFP suscita também o risco de especificação excessiva quando as equipas tentam “ser demasiado específicas” sempre que a transformação desejada não seja totalmente conhecida em todos os seus contornos devido à imprevisibilidade das práticas de GFP e da gestão da mudança. Os prestadores de serviços e desenvolvedores contratados podem cumprir as especificações definidas, mas não são incentivados, nem estão capacitados, a questionar essas especificações, resolver problemas e entregar os resultados desejados pelas reformas.
A abordagem modular adoptada pelo Benim em relação à sua transformação digital permitiu evitar problemas de especificação excessiva. Em vez de definir com precisão cada componente do sistema digital, o país traçou princípios orientadores para os sistemas de dados no sector público. Isto permitiu o desenvolvimento e a adaptação de diferentes soluções, mantendo simultaneamente um sistema unificado e interoperável baseado em regras de partilha de dados simples mas claras (especificações de dados comuns, plataformas partilhadas).
Gestão dos recursos humanos
Uma última preocupação comum na implementação de um novo sistema digital prende-se com a gestão e as capacidades dos recursos humanos. O êxito de uma reforma digital reside não somente na concepção e no desenvolvimento de um sistema novo, mas também na forma como este é utilizado. Para tal, impõe-se o fortalecimento da “literacia” digital, bem como a confiança nos dados digitais. Um sistema digital que reduza as actividades repetitivas e melhore a partilha de dados, por muito bom que seja, é inútil num contexto em que os funcionários não estejam preparados, dispostos ou confiantes o suficiente para utilizá-lo.
No Ruanda, a mudança para sistemas de GFP sem papel foi apoiada pelos mais altos níveis do Governo. Os ministros foram uns dos primeiros a avançar para assinaturas e aprovações digitais. No entanto, a mudança para os processos sem papel foi alvo de alguma resistência, uma vez que os funcionários públicos perderam os seus subsídios de viagem pois deixou de ser necessário deslocarem-se fisicamente até Kigali com os documentos para assinatura. Qualquer resistência à mudança deve ser investigada para compreender as causas profundas e as potenciais soluções.
A compreensão dos comportamentos, dos incentivos e das capacidades dos utilizadores, bem como de quem poderá resistir a uma reforma digital, é um aspecto essencial da gestão da mudança. A transformação digital não consiste simplesmente em implementar um sistema digital, mas requer uma análise cuidadosa do que os utilizadores precisam, os sistemas que podem ser melhorados e quem o processo poderá prejudicar.
Programa da CABRI para o reforço da GFP digital
O grosso do debate durante o primeiro webinar centrou-se nas experiências e nos desafios enfrentados pelos países na implementação de um SIGF “de base” destinado a fortalecer os sistemas de GFP e melhorar a prestação de serviços. É essencial, no entanto, que comecemos a olhar para além do SIGF e para a forma como entendemos a GFP digital. Na CABRI, reconhecemos que o objectivo não se cinge a implementar um mero sistema digital, mas sim em garantir que os sistemas digitais melhorem a forma como os recursos públicos são obtidos, afectados e utilizados para cumprir os objectivos políticos. Isto implica considerar as necessidades dos ministérios, departamentos e agências (MDA) e perceber como recolhem e utilizam dados financeiros para melhorar os serviços prestados e os resultados produzidos em prol dos cidadãos.
Com o apoio da Fundação Bill e Melinda Gates, a CABRI encetou um exercício de seis meses de definição de âmbito para conhecer a lacuna entre os sistemas de financiamento e as decisões de prestação de serviços, bem como as oportunidades que a digitalização apresenta para preencher esta lacuna. Este estudo moldará o futuro do nosso trabalho em matéria da GFP digital. Durante este período de seis meses, a CABRI conduzirá cinco análises aprofundadas das experiências dos países em relação à digitalização dos seus sistemas de GFP – olhando para além do SIGF para conhecer como os diferentes sistemas de dados se conjugam para melhorar a prestação de serviços.
Estas análises, e um segundo webinar a ser realizado em meados de 2024, servirão para projectar a segunda fase do trabalho da CABRI, com o objectivo de melhorar a partilha de conhecimentos para o êxito das reformas da GFP digital, o que pode passar pela inclusão desta componente no programa emblemático da CABRI de Reforço das capacidades de finanças públicas, a realização de um diálogo político para partilhar as experiências dos países na identificação de soluções para os desafios acima referidos ou a criação de um repositório digital que reúna o trabalho realizado até à data no continente africano em matéria da digitalização da GFP. Esperamos poder colaborar com os nossos Estados-Membros para conceber este próximo passo, e assim garantir que as soluções correspondem às necessidades do continente.
Se estiver interessado em participar nas análises de país ou se tiver sugestões de áreas de enfoque para este trabalho, queira contactar: Giselle Hadley at giselle.hadley@cabri-sbo.org.
A gravação do webinar, e as comunicações em formato PowerPoint estão disponíveis aqui.
[1] Dener, C., Watkins, J. and Dorotinsky. W. (2011). Financial Management Information Systems: 25 Years of World Bank Experience of What Works and What Doesn’t. Washington, DC: World Bank
[2] A saber : Long, C., Cangiano, M., Middleton, E., et al. (2023) Digital public financial management: An emerging paradigm. ODI Working Paper. London: ODI
e : e, G., Allen, R. and Botton, N. IMF Technical Notes and Manuals (2019) How to design a financial management information system: a modular approach. Washington DC.