Até nos anos em que não se regista uma cise sanitária mundial, cerca de 7 porcento (um estonteante 455 mil milhões de dólares americanos anuais) da despesa na saúde é desviada por acções corruptas. Os sistemas sanitários são muito vulneráveis a corrupção e fraude, dada a disponibilidade de recursos financeiros avultados; o envolvimento e fragmentção de múltiplos actores públicos, tanto a nível central como local, e na cadeia de valor de equipamentos médicos; assimetrias de informação no sistema de saúde; e dificuldades inerentes ao controlo do inventário pelos prestadores de serviço, o que frequentemente abre espaço para roubo puro e simples. A corrupção generalizada nos sistemas de saúde implica que a transparência, e a prestação de contas por ela incentivada, são indispensáveis para atingir os objectivos de saúde mais prementes em períodos normais, como a cobertura universal de saúde, e agora, para mitigar o contágio e gerir o impacto da Covid-19.
Volvido mais de meio ano desde o surgimento da pandemia, existe o consenso que os governos devem fazer tudo quanto seja preciso para evitar a perda de vidas e dificuldades económicas. Porém, ao adaptarmo-nos à nova normalidade, estão voltadas as atenções, como seria de esperar, para a transparência e a prestação de contas relativamente à despesa relacionada com a Covid-19. Embora as conversas a respeito da corrupção parecem centrar nos governos dos países em desenvolvimento, a fraude e a corrupção na aquisição de produtos sanitários e prestação de serviços florescem em todos os países, independentemente do nível de rendimento; e, dado que os governos em todo o mundo introduziram regimes de aquisição de emergência e estão a canalizar recursos financeiros para onde são necessários, com toda rapidez possível, todos enfrentam um maior potencial de fraude, e mais má administração e ineficiências gerais que o normal. De igual modo, o escrutínio e a supervisão parlamentares podem ser uma medida de prestação de contas menos eficaz nos dias que correm, pois poucos são os órgãos legislativos que convocam reuniões presenciais, ou encontram-se somente para discutir questões de absoluta necessidade, como a aprovação de leis urgentes ou vitais para responder à pandemia.
Todavia, regista-se um défice de transparência orçamental um pouco por toda a África, assimetrias generalizadas de informação nos sistemas sanitários, e fraca fiscalização orçamental em razão de quadros legais frágeis, instituições de prestação de contas subfinanciadas e fracamente capacitadas, executivos desproporcionadamente fortes, e poucos mecanismos de participação. Esta situação, agravada pela necessidade de combater o abuso de recursos financeiros para a saúde em África, caracterizados por limitações crónicas, e agora acentuadas, implica que a transparência e a prestação de contas em relação à Covid-19 se revestem de uma maior importância para os governos africanos. A experiência com a epidemia de Ébola demonstra-o: na Serra Leoa, uma auditoria de 2015 da resposta ao Ébola pelo Governo trouxe à tona uma enormes níveis de má gestão por parte dos funcionários, nomeadamente no Ministério da Saúde e do Saneamento. Os pagamentos de suprimentos e campanhas de educação foram duplicados e 30% dos fundos foram desembolsados sem documentação de apoio, foram atribuídos recursos a particulares em vez de organizações estabelecidas, e as regras de contratação pública previstas na Lei dos Contratos Públicos de 2004 foram violadas com frequência. As auditorias às despesas das organizações internacionais de desenvolvimento demonstraram igualmente que os salários e bónus dos profissionais de saúde foram pagos a particulares
Por conseguinte, não é de estranhar que, nos últimos cinco meses, os governos africanos se tenham comprometido a tomar medidas fortes para garantir a prestação de contas pelas despesas de emergência e reduzir o risco de corrupção e fraude. Estas incluem o compromisso no sentido de (i) publicar contratos de aquisição associados à Covid-19 superiores a um valor mínimo, (ii) publicar os nomes e os beneficiários efectivos das empresas às quais foram adjudicados contratos, (iii) validar a prestação de serviços e o fornecimento de mercadorias, (iv) realizar auditorias internas como mais frequência, (v) publicar relatórios relativos especificamente à Covid-19, (vi) apresentar relatórios mais frequentes, (vii) publicar relatórios de despesas, e (viii) criar rubricas orçamentais específicas para permitir a apresentação de relatórios sobre a Covid-19. Embora os governos tenham assumido estes compromissos independentemente de terceiros, os parceiros de desenvolvimento, em particular as instituições financeiras internacionais, também exigiram que os beneficiários de financiamento se comprometessem a uma maior transparência e responsabilidade. Através do Monitor de Despesa de Finanças Públicas para a Covid-19 da CABRI, temos acompanhado de perto estas medidas, uma síntese das quais se encontra apresentada no quadro que se segue:
País | Publicação de contratos de aquisição para a Covid-19 | Publicação dos nomes das empresas às quais foram adjudicados contratos | Publicação de informação sobre beneficiários efectivos das empresas que recebem contratos | Validação da entrega de produtos e serviços | Auditorias internas mais frequentes | Auditoria externa específica Covid-19 | Resultados da auditoria a serem disponibilizados ao público | Relatórios mais frequentes das despesas de Covid-19 | Publicação de relatórios de despesas | Rubricas orçamentais específicas para relatórios de Covid-19 |
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Argélia | ||||||||||
Angola | ||||||||||
Benim | x | x | x | x | ||||||
Botswana | x | |||||||||
Burkina Faso | x | |||||||||
Burundi | x | x | ||||||||
Cabo Verde | ||||||||||
Camarões | x | x | x | |||||||
RCA | x | x | ||||||||
Chade | x | |||||||||
Comores | x | x | x | x | x | x | x | |||
Congo | ||||||||||
Côte d'Ivoire | ||||||||||
Djibouti | x | x | x | x | ||||||
RDC | x | |||||||||
Egipto | ||||||||||
Guiné Equatorial | ||||||||||
Eritreia | ||||||||||
Eswatini | x | x | x | x | x | x | x | x | x | |
Etiópia | x | x | ||||||||
Gabão | x | x | x | x | x | x | ||||
Gâmbia | x | x | ||||||||
Gana | x | |||||||||
Guiné | x | x | x | x | x | x | x | x | x | |
Guiné-Bissau | ||||||||||
Quénia | x | x | ||||||||
Lesoto | x | x | x | x | x | x | x | x | ||
Libéria | x | x | x | x | x | x | x | x | ||
Líbia | ||||||||||
Madagáscar | ||||||||||
Malawi | x | x | x | x | x | x | x | |||
Mali | x | x | x | x | x | x | x | |||
Mauritânia | x | x | x | x | x | x | ||||
Ilha Maurícia | x | |||||||||
Marrocos | ||||||||||
Moçambique | x | x | x | x | x | |||||
Namíbia | ||||||||||
Níger | ||||||||||
Nigéria | x | x | x | x | x | x | ||||
Ruanda | x | x | x | x | ||||||
São Tome e Príncipe | x | x | x | |||||||
Senegal | ||||||||||
Seicheles | x | x | x | x | ||||||
Serra Leoa | x | x | x | x | x | x | x | |||
Somália | ||||||||||
África do Sul | x | x | x | x | x | x | ||||
Sudão do Sul | ||||||||||
Sudão | ||||||||||
Tanzânia | x | x | ||||||||
Togo | ||||||||||
Tunísia | ||||||||||
Uganda | x | x | x | x | x | x | ||||
Zâmbia | ||||||||||
Zimbabwe |
Outras medidas captadas no Monitor de Despesa das FP incluem a aprovação de orçamentos ou planos de despesas suplementares; a criação de contas bancárias específicas para a Covid-19 junto dos bancos centrais ou bancos comerciais; comités de supervisão do financiamento e despesas relativas à Covid-19; e desenvolvimento de websites sobre a Covid-19 contendo informações sobre os orçamentos e as despesas. Embora a informação no Monitor seja obtida directamente dos países ou de fontes publicamente disponíveis, a saber o Anti-corruption Tracker do FMI, é provável que alguns compromissos tenham sido excluídos. É evidente que, pelo menos no papel, os governos de todo o continente africano estão empenhados em assegurar que os fundos afectados às despesas relacionadas com a Covid-19 sejam aplicados para combater a Covid-19. Todavia, à semelhança da maioria das medidas de GFP, os compromissos de jure são frequentemente o oposto do que se passa na realidade. Os compromissos de prestação de contas são vãos sem a capacidade institucional ou a competência para controlar o cumprimento e impor sanções. Embora o nosso continente sofra com a pandemia há apenas cinco meses, já se registam relatos de corrupção relacionada com aquisições associadas à Covid-19 na RDC, Lesoto, Botsuana, Ilhas Maurícias, Moçambique, Malawi, Namíbia, África do Sul e Zimbabué.
Mas seria injusto e imprudente permitir que estes incidentes de corrupção nos desanimassem em relação às medidas de prestação de contas do Governo relativas à Covid-19. O que já conhecermos em relação a estes incidentes é, em alguns casos, reflexo do compromisso dos governos para com a transparência. Constatamos também que, nos casos em que os controlos e as medidas de transparência a priori foram insuficientes para mitigar a corrupção, os governos estão a implementar medidas anti-corrupção a posterior. Na África do Sul, o Presidente Cyril Ramaphosa criou um Comité de Ministros, presidido pelo Ministro da Justiça e dos Serviços Correcionais, para lidar com as alegações de corrupção associadas à resposta do país à pandemia do coronavírus. Para ajudar a comissão na sua avaliação dos contratos relacionados com a Covid-19, o Presidente Ramaphosa solicitou a todos os ministros e governadores provinciais que fornecessem informações sobre os nomes das empresas e detalhes das propostas e contratos que foram adjudicados pelos ministérios nacionais, governos provinciais e entidades públicas durante o período de Calamidade Nacional.
Noutros casos, não é por intermédio das acções do governo que somos informados da corrupção, mas sim pelas organizações da sociedade civil (OSC) que exigem a prestação de contas dos actores estatais. As OSC e as organizações sem fins lucrativos em todo o continente têm vindo a exigir que sejam tomadas medidas contra os acusados de corrupção. No Malawi, por exemplo, as OSC que integram a Aliança Anti-Corrupção manifestaram-se veementemente depois de mil milhões de kwacha (USD 1,3 milhões) de fundos de Covid-19 terem sido atribuídos a Beautify Malawi, a organização da então primeira-dama, Gertrude Mutharika. Surgiram receios que os membros do Comité Parlamentar de Combate ao Coronavírus estivessem a receber K300.000 (USD 407) cada um por cada conferência de imprensa convocada para actualizar o público sobre a pandemia, e que o total dos subsídios até 7 de Abril ascendia aos mil milhões de kwacha (USD 1,3 milhões). Na Namíbia, o Instituto de Investigação em Políticas Públicas (IPPR) tem acompanhado os contratos de aquisição de emergência relativos à COVID-19 através do seu Procurement Tracker e constatou que o preço das máscaras obtidas pelo Ministério da Industrialização, Comércio e Desenvolvimento de PME sofreu um aumento notável por alguns dos fabricantes de máscaras patrocinados pelo Estado, resultando na agitação pública.
As OSC têm sido proactivas ao apelarem aos governos para que garantam que existem medidas adequadas de transparência e de prestação de contas para mitigar a corrupção antes de se registar. No Quénia, num Memorando Conjunto das OSC sobre o Regulamento de Gestão das Finanças Públicas de 2020 (Fundo de Resposta a Emergências Covid-19) foi sugerido que, entre outras medidas, os Secretários de Estado das Finanças e da Saúde (i) asseguram a introdução de códigos orçamentais e contabilísticos específicos para facilitar o acompanhamento de todas as dotações e despesas associadas à Covid-19; (ii) os mandatos e controlos relacionados com a Covid-19 devem ser efectivamente delineados e delegados através da designação e descentralização da tomada de decisões e apresentação de relatórios; (iii) os pagamentos efectuados à margem do IFMIS devem ser registados a posteriori no IFMIS à primeira oportunidade; (iv) custos normalizados devem ser definidos para servir de orientação para todos os contratos públicos para artigos essenciais; e (v) todas as informações relativas aos contratos relacionados com a Covid-19 devem ser publicadas nos portais governamentais, acompanhadas do nome da pessoa e departamento responsável em cada fase da aquisição. É evidente que as OSC têm um papel importante a desempenhar no combate à corrupção ao exigir a introdução de medidas preventivas adequadas. Mas a realidade é que nem todas as OSC estão dotadas dos conhecimentos necessários sobre o processo orçamental para fazer valer esta exigência. É por esta razão que a CABRI, e redes como a Global Initiative for Fiscal Transparency e a International Budget Partnership, trabalham com os as OSC para reforçar as suas capacidades técnicas e proporcionar um espaço de diálogo construtivo com ministérios das Finanças.
Através do Monitor de Resposta das FP à Covid-19, vamos continuar a acompanhar o desempenho dos governos em relação aos seus compromissos nobres de acompanhar, contabilizar, apresentar relatórios, publicar e auditar as despesas de emergência, for forma a comunicar quais as regras, processos, práticas e capacidades contribuem ou não para uma gestão eficiente e eficaz dos recursos em períodos de pressões orçamentais extraordinárias.